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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Abertura da Exposição O filme perdido em theresina vagabanda

O Filme Perdido
entre obra e documento , entre passado e futuro

Antônio de Noronha, com sua máquina fotográfica a tiracolo, estava sempre por aí, na efervescência cultural em Teresina nos anos 70, onde a experimentação artística e contravenção comportamental era o tempero que dava a graça ao cardápio político cultural. Dentre uma pitada de poesia e outras coisitas mais, muitos filmes, em super 8, foram realizados. Um deles, bastante enigmático: “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”. Interessantíssimo roteiro de Carlos Galvão e Edmar Oliveira, que, também, compartilhavam da direção, tendo Arnaldo Albuquerque no manejo da bitola Super 8 e Lídia de Noronha Pessoa na produção. O casal do Gênesis teresinense era formado por Claudete Dias e Torquato Neto, que, na época, já era um dos mais importantes nomes do cinema marginal brasileiro, catalisador das ideias de uma geração de cineastas surgida após o Cinema Novo.


Reserve!

Um das exigências do mundo atual é a reavaliazação do alcance semântico de alguns binômios como original e cópia, arte e não-arte, documento e obra. Muitas dessas categorias se mostram problemáticas para pensar as novas práticas culturais.Um still fotográfico de um filme é apenas o registro documental do filme ou pode ser entendido, também, com uma obra em si mesma?Os limites das categorias, obra e documento, não são mais tão precisos. Logo, uma resposta a essa pergunta não pode se dar de forma tão absoluta.

A arte contemporânea vem insistentemente ampliando a noção de obra. Configura-se em um jogo de transposições de categorias, signos, linguagens. Acontece, muitas vezes, como poéticas efêmeras que exigem atenção ao registro documental, assim como a inserção deste nos espaços institucionais da arte, antes destinados somente às obras tradicionais. Processa-se em contextualizações e referências sociais, políticas, identitárias, filosóficas, questões de gêneros entre outros poréns que demandam, em muitos casos, outros suportes expressivos. São territórios movediços que a partir dos anos 60 são explorados. Diferente da arte moderna do ocidente capitalista que, de modo geral, vislumbrava uma arte pela arte.

Pensar as fotografias de Antônio de Noronha como documento da obra-filme Adão e Eva, para logo em seguida reconhecer sua autonomia em relação a essa matriz poética primeira, tendo-as, então, como obras em si, é apenas o primeiro movimento de pensamento nesse tabuleiro de lances complexos que se abre quando inferimos sobre os sentidos da arte hoje.


No caso do still fotográfico de “Adão e Eva” - que possui uma camada afetiva pelo fato de ser um dos últimos trabalhos de Torquato Neto - sua percepção como obra (e não apenas documento) se torna muito mais intricada, visto que a fragilidade, como a vida, de se contar somente com o rolo de filme original, levou à tentativa de fazer uma cópia em Além Mar. Porém, como viver não é certo, nem preciso, a caminho o filme se extraviou. Mas o que muda no valor cultural do still o fato de o filme ter desaparecido?


A imprecisão quanto ao paradeiro e à existência do filme torna o still fotográfico uma obra-documento rara onde as complexidades entre essas categorias são percebidas com mais clareza e, ao mesmo tempo, obscurecidas. O golpe do destino terminou por transmutar a película em um objeto único e inalcançável, aurático na real acepção benjaminiana, que se rebelou a caminho da reprodutibilidade técnica, tornando-se um dos maiores fetiches da história da arte no Piauí, logo uma preciosidade da cultura underground.

O conjunto de fotografias está ainda entre nós, concretamente, como obra/indício/documento de uma possibilidade que se instala entre o passado e o futuro. Possibilidade de resgate de imagens para quem tenta sentir o frescor experimental de uma obra insumo que permeia o imaginário dos anos 70, tanto como possibilidade para quem deseja vê-la surgir, como um milagre do mesmo acaso, em qualquer instante futuro. Nessa tensão entre nostalgia e expectativa, nessa tensão de categorias sobre o estatuto da fotografia, reside uma das chaves para sentirmos o still de Antônio de Noronha em maior potência.


guga carvalho
curadoria

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